Elaine Tavares, jornalista
Chove no meio-oeste catarinense, no emburrado mês de maio de 2010.
O frio é de lascar. A cidade, que praticamente contorna as fábricas de papel, amanhece envolta na fumaça que nunca pára de sair das chaminés. O município, conhecido pela qualidade de suas maçãs, pode ser chamado também da cidade do pinus, pois, para cada lado que se olhe, lá estão eles, implacáveis, prontos a alimentar a boca gigante das fábricas, responsáveis pelo cheiro característico que toma o espaço todo. A região, que conta com outras cidades de médio porte como Caçador, Curitibanos, Três Barras e Joaçaba, é um campo de lutas importantes no âmbito fundiário. Coabitam grandes propriedades, assentamentos do MST, ricos fazendeiros e trabalhadores explorados.
Nos campos ainda reverbera a mais importante luta agrária deste chão catarina, que foi a batalha do Contestado, quando milhares de famílias decidiram construir outra forma de viver no mundo, em luta contra a invasão de suas terras pelos “donos do trem”. E, neste caldeirão de conflitos que ainda se explicitam, os movimentos populares precisam demandar muito esforço para se fazerem ouvir. Assim, é justamente no campo da comunicação que eles hoje travam uma feroz batalha. Por conta disso, aconteceu o Segundo Seminário de Comunicação e Cultura Popular do Contestado, organizado pela Agecon (Agência Contestado de Notícias Populares).
A história desta agência peculiar, que divulga notícias de toda a região, mas sempre com a mirada popular, é tão bonita quanto a luta deste povo guerreiro. Cansados de não terem lugar algum para se expressar, uma vez que as rádios e jornais locais são expressão da classe dominante, os movimentos populares locais começaram a pensar numa estratégia de unidade que permitisse dizer a palavra omitida pelos poderosos. Não foram poucos os debates e as reuniões pela região afora, nos invernos rigorosos e nas tardes escaldantes. Mas, finalmente, em 2007, no mês de agosto, nasceu o instrumento que viria balançar a estrutura de poder midiático na região: a Agência Contestado de Notícias Populares. Esta agência vinha robusta, alavancada por 18 organizações sociais, e apontava como propósito, ser um instrumento de luta para anunciar uma sociedade nova e um projeto popular para o Brasil.
Num dia de muito frio, no galpão de igreja, naquele 2007, as gentes se juntaram para um seminário. Havia desejos, sonhos, esperanças, mas eles não sabiam bem como tornar real a proposta. Foi preciso um dia inteiro de conversas com jornalistas amigos para que a coisa começasse a se esboçar. O desafio estava lançado e poucos meses depois a página da internet estava no ar. A pretensão era atingir umas 300 pessoas por mês, mas, passados 25 meses, já foram contabilizados mais de 40 mil acessos. Hoje, a agência é um pólo de difusão de tudo o que acontece na região, fazendo a ligação com as demais regiões do estado, do país e do mundo. Por enquanto, as notícias vem de agentes de comunicação popular, que se esforçam por repassar informações de toda ordem. Não há qualquer jornalista formado no projeto. Mas, a agência está aberta a todo tipo de colaboração. Ela segue o preceito da soberania comunicacional, na qual o povo, impedido de ocupar os espaços de expressão, cria o seu próprio lugar. “Os meios de comunicação não comunicam o que nos interessa, então nós mesmos fazemos nossa comunicação”, argumenta Jilson Carlos Souza, da Associação Paulo Freire de Educação Popular e um dos coordenadores da Agecon.
Os parceiros e a formação de uma rede popular
Os valentes herdeiros do povo do Contestado agora querem dar mais um passo na busca da soberania comunicacional e apostam na criação de uma rede popular de notícias, que permita as gentes de todo o estado se inteirarem sobre o que acontece em cada canto de Santa Catarina. A idéia é de que as experiências populares, tais qual a Agecon, possam se interligar e trocar informações, entrevistas, histórias etc..
E assim, aproveitando o lançamento de mais uma novidade na Agecon, que foi a entrada no ar da Rádio Web Cidadania, a Agência Contestado de Notícias Populares reuniu em Fraiburgo várias propostas de comunicação popular para concretizar a formação desta rede tão sonhada. Foi por conta deste chamado, que neste maio emburrado, em outro salão de igreja, numa manhã de frio cortante, o povo que produz a palavra livre se encontrou.
O primeiro a falar foi Anderson Engels, da Rádio Comunitária Fortaleza de Blumenau. Ele contou um pouco da história da criação da rádio, em 2002, ainda sob o comando do saudoso Adenilson Telles (jovem jornalista morto num acidente de carro, em 2006), da perseguição efetuada pela Polícia Federal que chegou a levar presos os locutores da rádio, em 2003, quando invadiram o espaço sob a alegação de que era uma “rádio pirata”. Falou do processo de recuperação dos equipamentos, da luta da comunidade do Bairro Fortaleza e dos sindicatos para reerguer a rádio e colocá-la no ar outra vez. Hoje, a rádio é uma referência em Blumenau e sua história de luta inspira outras tantas pelo estado afora. Anderson é ativista do movimento cultural da cidade e estuda jornalismo, mas sua ação na rádio se dá pela compreensão de que é o povo quem tem de assumir o comando da sua comunicação. A Fortaleza é mantida por um grupo de sindicatos de Blumenau e tem a completa confiança da comunidade que faz romaria para conhecer a rádio, hoje também transformada em espaço artístico-cultural, com suas paredes cobertas pela arte e seu microfone aberto à vida real.
Depois foi a vez de Edson de Lourenzo, da Rádio Livre Cidade Santa do Taquaruçu, uma experiência bonita de rádio no meio rural. Na pequena comunidade de Taquaruçu de Cima, berço da luta do Contestado, 52 famílias fizeram nascer esta rádio, com sua antena presa a um Taquaruçu, pendurado a uma araucária, para simbolizar a resistência cultural, histórica e ambiental. A manutenção da rádio é feita pela própria comunidade que se reveza no pagamento da luz. Ali, durante a programação que é tocada por nove pessoas, se registra a história do povo local, os costumes, a música. A rádio existe desde 2007, quando o povo decidiu que se as rádios vizinhas não lhes davam espaço, eles iriam fazer acontecer. Hoje, além da rádio, eles mantêm o Jornal Taquaruçu que é distribuído em papel e por correio eletrônico. “Nossa rádio fica ali, no meio de um matinho, mas é gigante na capacidade de falar da nossa realidade. Não temos propaganda, tudo é bancado pela gente de Taquaruçu”, diz Edson.
Franciele Trautman contou a história da Rádio Comunitária Maria Rosa, uma das primeiras da região de Curitibanos. Ali, o povo também foi buscar na história a inspiração para a luta comunicacional. Maria Rosa é uma das heroínas do Contestado. Fundada em 2003, a Maria Rosa é uma das comunitárias mais bem organizadas do estado, tem oito comunicadores e diversos programas que expressam os mais diferentes movimentos sociais. A rádio entra na vida das pessoas através da proposta “brincando de radialista”, na qual a comunidade aprende a falar, escrever notícias e tudo mais. Além disso, é hoje espaço cultural da cidade e uma importante fonte de informação e comunicação, pois as pessoas podem mandar recados, avisos, sem pagar nada.
A experiência da Revista Pobres e Nojentas foi relatada por mim, como uma proposta de comunicação impressa que ainda precisa de muito esforço do grupo que a viabiliza para ir ao prelo. Poucos são os apoiadores. A revista sobrevive com assinaturas e a venda de mão-em-mão feita pelos próprios jornalistas. Apenas o Sindprevs, sindicato dos trabalhadores da Previdência, aporta sistematicamente um recurso que permite a distribuição gratuita de parte da edição. A revista é bimestral e se propõe a narrar a vida que vive e se expressa na periferia do sistema capitalista. A experiência da Rádio Comunitária Campeche também foi relatada, como um espaço de informação, formação e cultural que já está encravado na vida da comunidade. Nascida do desejo dos movimentos sociais do bairro Campeche, em Florianópolis, a rádio tem vários programas ao vivo, programadores voluntários e fica no ar 24 horas. Sobrevive das anuidades dos associados e trabalha com apoios culturais que são arrebanhados no bairro mesmo. Ninguém compra espaço ou faz propaganda. Os pequenos comércios locais fazem uma pequena contribuição mensal e tem seu nome divulgado. A participação comunitária é um dos pilares do projeto.
Roberto Bohnenberger, da Rádio Comunitária Tangarense e do Jornal Vitória, ambos de Tangará, narrou as peripécias do grupo da rádio e as escaramuças com a Polícia Federal, que por várias vezes veio fechar a rádio, nascida em 1997. Por conta destes embates ela acabou ficando fora do ar, só retornando em fevereiro deste ano. “Neste meio tempo, como a gente já tinha acumulado experiência com comunicação popular, decidimos criar um jornal em 2004, que nasceu pequeno, mas, depois, foi melhorando e hoje já circula pelos vários municípios da região”. Segundo Roberto, tanto a rádio quanto o jornal são veículos que fazem circular a vida real das gentes locais, aprofundando a auto-estima, promovendo a organização e sendo fermento para as lutas.
Raul Fitipaldi, do portal Desacato, sítio de informação sobre as lutas na América Latina, também mandou sua contribuição em forma de texto, lido em voz alta para todos os presentes, uma vez que no mesmo dia acompanhava o lançamento do filme “De um golpe, Honduras”, com roteiro de sua autoria e uma das primeiras produções cinematográficas da Associação Rádio Comunitária Campeche (ARCA), de Florianópolis. Ressaltando a importância da Soberania Comunicacional como espaço de apropriação do povo de sua própria comunicação, ele apontou a necessidade da criação de uma rede que articulasse todas estas experiências.
Ao final, para fechar a proposta de comunicação e cultura popular, a Associação de Capoeira e Cultura Afro de Fraiburgo trouxe seus meninos e meninas pra uma apresentação desta dança/luta que é o símbolo da resistência do povo negro. E, embalados pela música dolente do berimbau, as gentes se irmanaram na mesma proposta de luta por um país digno, com riquezas repartidas.
A luta se entrelaça e avança
O Segundo Seminário de Comunicação e Cultura Popular do Contestado terminou com este compromisso. Todos os participantes passarão a trocar matérias, textos, áudios, imagens, fotos, enfim, tudo o que for produzido e que pode ter interesse em outros espaços. A vida e a luta da gente do campo será divulgada na praia do Campeche, assim como os pescadores poderão ser escutados no oeste catarinense. A rádio que se faz ouvir desde um taquaruçu vai transmitir a luta das gentes de Blumenau e a cidade da Oktoberfest vai escutar o grito do povo de Tangará. Uma teia gigante de batalhas sociais, de histórias de vida, de cultura, de arte, tudo circulando desde uma proposta solidária e soberana. O povo informando a si mesmo, dentro da lógica da soberania comunicacional que pressupõe o controle dos meios e o controle da produção.
Entre os jovens, sindicalistas e lutadores sociais que acompanharam os debates durante toda manhã ficou bem clara a certeza de que é a partir do trabalho comunitário popular que esta soberania pode ser constituída. E mais, não é necessário apenas resistir ao monopólio despótico dos meios de comunicação, mas fazer a luta renhida para mudar este sistema opressor que impede a livre circulação da palavra popular. Podemos dar o nome que quisermos a isso, socialismo, sumak kausai (o bem viver andino) ou o reino do céu na terra. O nome é o de menos. O que importa é que caminhemos para a mudança radical disso que aí está. Esse é o nosso compromisso. Tal qual dizia Jesus: eu vim pôr fogo ao mundo, e hei de atiçá-lo, até que arda! Cabe a nós atearmos fogo a este sistema capitalista que tanto nos rouba vida.